Wednesday, March 26, 2014

O pássaro azul


Você não sabe e nem me viu.
Eu estava ali quando você passou.
Eu te vi.
Te vi passando distraído, olhando um pássaro azul que passava também distraído, por causa das nuvens do céu. Pelo menos eu achei.
Será que os pássaros veem as nuvens no céu? Eu vi.
Eram altocumulus. Eram gotículas de água no céu e talvez o pássaro estivesse pressentindo a frente fria que possivelmente se aproximava.
Acho que você não viu porque estava olhando o pássaro que era muito bonito, como o tapete de nuvens sobre nós.
Eu vi tudo bonito.
E você distraído, passando por mim.



Sunday, March 23, 2014

Dança

Dancei.
Tentei me lembrar da última vez em que dancei desse jeito, solto.
Quadris soltos, braços, pés, pescoço.
O sorriso largo no rosto e os olhos fechados.
Desatando nós do destino. Lavando a rotina da alma.
Lembrei da Lelê porque com ela eu dançava assim. Era ela quem começava e eu a seguia, segura pela âncora de sua companhia.
Na maioria das vezes com blues.
Porque o blues tem essa coisa de arrancar a alma das profundezas e trazê-la à superfície.
Na frente de qualquer um ou em qualquer lugar: o quadril começa a mexer, dá aquela rebolada e um sorriso sacana se destaca no rosto.
É mais forte do que eu, não tem jeito.
Mas ontem eu estava sozinha.
Sozinha na noite, ouvindo um blues.
Pois que, como descrito acima, meus quadris começaram a mexer, dei uma rebolada pra cá, outra pra lá, pezinho levantou, pescoço girou e... me joguei na pista que nem sequer existia naquele lugar.
E, de olhos fechados, visualizei uma cena inédita e constatei uma realidade incrível: sou mãe!
Sou mãe!
Essa constatação, aparentemente sem propósito e deslocada, foi das mais reveladoras. Explico: Descobri que sendo mãe sou mais livre, mais mulher, mais foda-se-todo-mundo do que jamais fui em toda minha vida de pseudo-revoltadinha-libertária.
Fechei os olhos e sorri um sorriso tão largo e tão intenso de certeza de que finalmente nasci.
Me reencontrei.
Sou mãe!
Como se um ciclo tivesse se fechado e uma verdade tivesse saltado à minha frente: sou mãe e tenho uma família.
Tive a força e o grito pra parir meu filho, alimento-o com o líquido quente do meu seio.
Sou forte o bastante para educá-lo, acordar todas as noites, cantar músicas infantis com a mais empolgação e ter cocô embaixo da unha.
Noites em claro, peitos machucados, cólicas intermináveis, rupturas, afastamentos, reencontros. Cansaço físico, esgotamento emocional, tentativas, descobertas, súplicas.
Silêncios, sorrisos cúmplices, abraços.
Soluços, brinquedos, dias de chuva.
Medos, certezas e falhas.
Frustrações.
Amor.
Uma filho, uma família.
E, depois disso, por que eu precisaria de muleta pra dançar solta na noite?
Por que precisaria de companhia pra ter coragem de ser boba, infantil, imatura?
Por que teria vergonha de parecer ter 13 anos, dançando descabelada?
Dancei descabelada.
E esse foi o texto mais infantil que já escrevi.

Saturday, March 22, 2014

A mensagem

Essa madrugada acordei pensando nela e não consegui mais dormir. Rolava na cama enquanto tantas palavras e sentimentos se formavam em uma tentativa de recriar aquele tempo, aquele momento da vida que definiu tudo o que viria depois.
A mensagem falava de liberdade e redenção.
Falava de perdão, talvez.
Talvez pudéssemos nos perdoar e recomeçar o que havíamos abandonado. Talvez pudéssemos tentar sentir novamente aquela brisa de vida que carregávamos em nosso ventre a cada nova manhã.
A brisa era sua.
A brisa e o calor e a selvageria e a liberdade eram seus.
Através de você eu caminhava pelo mundo e pelas trilhas da noite. Através de você eu vagava, quase que transparente, através de seres etéreos, brilhantes que conhecíamos por onde passávamos.
Você era meu escudo e minha voz. Com você eu estava em todos os lugares ao mesmo tempo, cercada de pessoas, de festas, em meio à arte, ao álcool, à filosofia e ao amor.
E me despia de mim mesma a cada nova estação.
Você que na mensagem falou em libertação e que, no entanto, sempre me conduziu a ela, que sempre andou nua pelas ruas e mundos, finalmente conseguiu me libertar? Ou se libertar de mim? Ou nos libertar do cordão de ouro que nos uniu até hoje, mesmo através dos tantos anos e tantos milhares de quilômetros que nos separam?
Talvez você não saiba e talvez até te faça bem saber que sem você eu sou meio chata, careta, travada e assustada. Tenho medo da vida, sim. Tenho pudores.
Não queria, mas sou assim.
Você disfarçava e engolia meus pudores com sua enorme boca de dentes cerrados. Mastigava meus medos como mastigava aquelas balinhas de menta: dilacerando-as uma a uma até terminar todo o pacote.
E eu, confortável e sedutora, me lançava no mundo, nua também, porque protegida por suas rosnadas e latidos e pontapés que adorava dar no mundo.
E não sei o que aconteceu depois.
Talvez tenha me encontrado. Talvez tenha preferido me vestir de mim mesma, finalmente. Talvez tenha encontrado outro esconderijo.
Talvez tenha preferido a covardia do encontro fácil, do conforto das relações superficiais, da tranquilidade, da pseudo segurança que imprimi em mim, como um carimbo de “felicidade, enfim”.
Enfim. Sempre te amei.
E fim.