Wednesday, August 23, 2006

Você sabe?


Sabe assim...

Sabe quando é uma delícia não racionalizar e deixar que a poesia tome seu curso?
Sabe? Você sabe ficar sozinho?
E se permitir um banho de poesia...
Com a poesia da música penetrando nos poros e a poesia do espelho, leve... e no entanto intenso e obscuro, inundando as veias de prazer... e a poesia da imaginação creando absurdos... pois, realmente, é preciso crer em alguma coisa, de alguma forma, por mais fugaz que seja.
E a música, com o vinho (combinação perfeita) fazem com que a loucura diária se realize, aquela loucura diária necessária pra que a rotina seja ao menos suportável, pra transformar o usual em belo... de alguma forma...
É... há o que se fazer amanhã... e haverá o que se fazer sempre...
Mas a luz, essa pouca luz, misturada à música suave e à vontade de algo que nem mesmo se sabe se existe... e à poesia que é possível crear...
É belo.

Pensamentos convergentes III

Por não estarem distraídos





Havia a levíssima embriagues de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter essa sede era a própria água deles. Andavam pelas ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque
--- a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras --- e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração.
Como eles admiravam estarem juntos!
Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, e ela não via que ele não vira, ela que estava ali no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só por que tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo por que quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Clarice Lispector

Pensamentos convergentes II

Romântica pra cacete
Nem toda relação homem e mulher é romance
Nem todo dia tem Sol, nem toda sobremesa é cheese cake e nem toda relação homem e mulher é romance.
E você vai fazer o quê?
Vai se matar por causa do cinza acima da sua cabeça? Vai tremer hipoglicêmica e carente porque só sobrou torta holandesa? Vai se manter virgem e intacta até aparecer o homem que vai te dar uma casa com cerquinhas brancas, cachorrinhos e bebês?Claro que não, você vai viver a vida, curtindo o que ela tem de melhor. E o que um bonitão que só quer te comer pode ter de melhor? Bom, eu poderia fazer uma lista. Mas a droga do romance estraga tudo isso, a droga dos filmes românticos nos enganam como as propagandas de cerveja que enchem de gostosas os babacas segurando um copinho.Por que raios a gente tem de romantizar qualquer demonstração de carinho de um homem se na maioria dos casos eles só querem nos comer?E por que ficamos tão putas se eles apenas nos comem e caem fora?Quem disse que eles são obrigados a nos amar eternamente só porque conheceram de perto a nossa beleza interior? E, finalmente: que mal há em sermos gostosas e os homens quererem nos comer?Por que isso parece ofensivo? Por que nos sentimos usadas se ambos estão lá de livre e espontânea vontade?
Isso é herança das mulheres pudicas, sonhadoras e donas de casa do século passado ou a célula do romance vai eternamente se multipilcar e passar de geração em geração através das mulheres?Eu tento, juro que tento. Mas a droga do romance não me deixa em paz.Eu não tenho mais idade para ficar morrendo de vontade de dar para um cara e ficar enrolando até ouvir juras de amor eterno (que podem ser só para me comer), francamente isso não é coisa de mulher!Mas depois passo anos pensando se não fui muito fácil.Eu vou lá, mato minha vontade, tomo um belo banho, volto independente e resolvida pra casa e acordo no dia seguinte morrendo de vontade de ganhar flores, receber ligações românticas e promessas eternas.É uma praga.
Conscientemente eu sei que nem todos os caras querem namorar comigo, e mais conscientemente ainda eu sei que eu também não quero namorar com a maioria deles. Mas lá dentro fica a dúvida: será que fui usada?Da onde vem esse sentimento fraco, submisso, antigo, arcaico, pobre e idiota de que numa relação sexual o homem é o dominante que come e a mulher a coitada que é comida?
Claro que tem os babacas que nos fazem sentir assim, não se preocupam com o nosso prazer e agem na velocidade do prazer deles.Mas tirando esses babacas (e depois que você experimenta um quase sempre fica descolada para afugentar os outros) por que um homem que te trata bem, te come direito, com carinho, com respeito e depois não quer namorar com você, te ofende?
E por que se ele te tratou tão bem, com tanto carinho e respeito, só quis te comer e caiu fora? Precisava se dar tanto trabalho?A vida é complicada. E a vida é complicada porque nós mulheres romantizamos tudo, ou quase tudo. Ou justamente o que não deveríamos.A gente faz planos mesmo em cima dos silêncios deles. A gente vê beleza em cada sumiço. A gente vê olhares de amor no mais puro olhar de tesão. A gente acaba de trepar e é batata: deita no peito deles!Ah, o romance! Mulher que é mulher não consegue fugir de um.Você pode até levantar apressada, fumar um cigarro, olhar a janela. Você pode disfarçar. Mas lá no fundo, bem escondido, estão seus sonhos de entrar de branco numa igreja e ver lá na frente aquele homem para quem você acabou de dar.
Você vai para o banho super senhora de si, mas enquanto a água escorre levando restos de células esfregadas e sêmens, você fica na dúvida entre se ele vai ligar no dia seguinte e o nome dos filhos.Será que ele vai ter os olhos do pai?
Eu cansei de ser assim, por que não consigo ver os homens como diversão se eles conseguem tão facilmente nos ver assim?Por que não posso aceitar que nem tudo é romance?
Por que a droga da chuva me lembra todas as vezes que eu voltei para casasonhando e no dia seguinte me deparei com a frieza do dia seguinte?Por que a droga do jazz me lembra a vida perfeita que eu sonho a cada ombro cheiroso que me cega os problemas e me ensurdece a espera?Por que a droga da noite me lembra os corpos amados que ainda que cansados e tombados nunca caíram por mim?
Aonde está você pelo amor de Deus! Aonde está você? Não vê que estou cansada de pertencer a todos e não ser de ninguém? Não vê que minha devolução me enfraquece cada vez mais em me entregar?Não vê que na loucura de te encontrar não meço as entregas? E elas nunca são entregas porque eles nunca são você.Porque comecei este texto tão bem e mais uma vez esqueci de ser a mulher moderna que eu tanto gostaria de ser para lembrar a mulher romântica que espera por você a cada esquina, a cada decote, a cada riso nervoso que solto em forma de grito à espera do seu socorro.
Eu vou continuar vendo você em todos esses crápulas que fingem ser você para vulgarizar o meu amor. Eu vou continuar cheirando você em todos esses suores fugazes que me querem num conto pequeno. Eu vou continuar lendo a nossa história em contos pequenos.Cadê você que some a cada som que não me procura?
Cadê você que parece ser e nunca é porque desaparece no cansaço das relações?O meu amor acaba por todos, a minha espera cansa por todos, a minha raiva ameniza por todos. Mas a minha fé por você cresce a cada dia.Eu posso transar no primeiro encontro, eu posso transar por transar. Eu posso trepar. Eu posso te encontrar num flat na hora do almoço para uma rapidinha. Eu posso reclinar o banco do meu carro e mandar ver. Eu posso deixar você não me beijar na boca. Eu posso aceitar que você nunca me leve de mãos dadas a um cinema. Eu posso ser uma noite e nada demais. Eu posso ser um banheiro e nada mais. Eu posso ser nada mais.Mas eu nunca, em nenhum momento, deixo de romantizar a vida, cada segundo, por mais podre que seja, dela. Eu nunca deixo de procurar você. Eu nunca deixo de acreditar que você exista, e eu nunca deixo de acreditar que você faz o mesmo a minha espera.

Tatiane Bernardi

Pensamentos convergentes I

Quero dizer que te amo só de amor. Sem idéias, palavras, pensamentos. Quero fazer que te amo só de amor. Com sentimentos, sentidos, emoções. Quero curtir que te amo só de amor. Olho no olho, cara a cara, corpo a corpo. Quero querer que te amo só de amor.
São sombras as palavras no papel. Claro-escuros projetados pelo amor, dos delírios e dos mistérios do prazer. Apenas sombras as palavras no papel.
Ser-não-ser refratados pelo amor no sexo e nos sonhos dos amantes. Fátuas sombras as palavras no papel.
Meu amor te escrevo feito um poema de carne, sangue, nervos e sêmen. São versos que pulsam, gemem e fecundam. Meu poema se encanta feito o amor dos bichos livres às urgências dos cios e que jogam, brincam, cantam e dançam fazendo o amor como faço o poema.
Quero da vida as claras superfícies onde terminam e começam meus amores. Eu te sinto na pele, não no coração. Quero do amor as tenras superfícies onde a vida é lírica porque telúrica, onde sou épico porque ébrio e lúbrico. Quero genitais todas as superfícies.
Não há limites para o prazer, meu grande amor, mas virá sempre antes, não depois da excitação. Meu grande amor, o infinito é um recomeço. Não há limites para se viver um grande amor. Mas só te amo porque me dás o gozo e não gozo mais porque eu te amo. Não há limites para o fim de um grande amor.
Nossa nudez, juntos, não se completa nunca, mesmo quando se tornam quentes e congestionadas, úmidas e latejantes todas as mucosas. A nudez a dois não acontece nunca, porque nos vestimos um com o corpo do outro, para inventar deuses na solidão do nós. Por isso a nudez, no amor, não satisfaz nunca.
Porque eu te amo, tu não precisas de mim. Porque tu me amas, eu não preciso de ti. No amor, jamais nos deixamos completar. Somos, um para o outro, deliciosamente desnecessários.
O amor é tanto, não quanto. Amar é enquanto, portanto. Ponto.

Roberto Freire

Wednesday, August 16, 2006

Ilha


Ah! E como voltei diferente...
Em um momento, eu estava no topo de uma montanha, era a montanha errada. Eu devia ter ido para a direita, mas ventos me levaram para a esquerda. E à esquerda não havia trilha, não havia trilha.
E lá em cima, da montanha agora certa, fechei os olhos. Parei. Lá em cima. Vendo deus em forma de água e pássaros, verde, muito verde e brisa suave no rosto.
Naquele momento, momento certo, sozinha, em algum dia de agosto dos meus 28 anos, agradeci pelo presente que me dei.
Eu, sozinha, me presenteei.
Me presenteei com terra e água e luz no corpo, com leveza no movimento e com um suspiro profundo de simples alegria. Alegria simples.
A montanha me engolia e eu me permitia nela penetrar, com pés cansados e corpo suado.
Me entreguei a meu presente.
E vi que ninguém poderia me agradar tanto quanto eu mesma.
Vi também como estava presa e tensa dentro do mundo que criei pra mim. Condicionada e com os braços atados. Resignada a movimentos curtos e palavras vagas. A presenças superficiais e abraços pouco verdadeiros.
Não, não.
O que preciso é de olhares que me atravessem. Toques que em meu corpo permaneçam como uma lembrança boa. Prazer que corra em minhas veias a cada instante de lembrança.
E a entrega foi tanta, e o peso sugado pela terra, e a tristeza arrancada pelo vento, e o medo dissipado pelo longo caminhar que o sorriso voltou leve e natural. Solto.
E, por tão verdadeira, fui ainda presenteada por uma descoberta.
Um encontro, uma estória e alguns dias.
Encontro daqueles em que o toque fica no corpo e o prazer nas veias.
Lembrança boa.
Agora volto ao meu caminho. Procurando a trilha errada.


15/08/2006