Thursday, July 02, 2009

Michael Jackson e a fabricação de si mesmo

Paulo Costa Lima
De Salvador (BA)

"Homens promovidos ao estado de produto"

Mais do que qualquer característica pontual - voz, repertório, gênero - a construção de Michael é o personagem. Seus clips provam isso. E que personagem seria esse? Por que exerce um tal magnetismo?
Podemos evocá-lo facilmente através do estilo de movimento, uma cinética toda especial, uma dança eletrizante mas aparentemente disforme, dança sem lei que faz o corpo andar para trás, amolecer que nem borracha, deslizar sem gravidade. As crianças piram: seria um Chaplin trans-figurado pela pós-modernidade?
Esse personagem que canta e dança, atrai para si os adereços mais incríveis. Na verdade ele configura o corpo como adereços - e naquele famoso sacolejo de quadris que sempre emoldura uma pegadinha radical, parece nos dizer que o próprio pênis é um adereço -, existiria irreverência maior?
Com isso, personifica a rebeldia e a 'aventura' na terra do sem-limite, sua never-land interior, seu rancho permanente, de onde nunca pôde sair. Preso a um intrincado processo de fabricação artificial de si mesmo - impedido de seguir o caminho da identificação com um pai violento - transforma essa auto-fabricação (misérias e delícias) no foco de atenção midiática.
Repete compulsivamente esse fantasma de que não há pai, de que ele se inventa sozinho - tal como seu personagem.
Isso vale tanto para a dimensão ficcional como para o MJ real, que apresenta seu filho ao mundo de maneira esdrúxula, do alto de um hotel. Aparentemente não há registro do que é um filho. Como poderia haver?
Preso nessa condição, enxerga-se/ama-se em todos os meninos, no quase delirio dessa horizontalidade fabricada, onde ele também é um deles. Mas a onipotência da fama bate de frente com o sintoma - no final das contas ele realizou o desejo do pai, tornando-se o J. mais famoso. Esse conflito deve ter exigido medidas drásticas.
Ignora a genética e fabrica-se branco - não há limite. Envolve-se, portanto, numa intricada desconstrução impossível de sua negritude, que grita por todos os seus poros, em cada jeito de corpo, em cada foto de família. Dolorosa travessia ao nada da impossibilidade de identificação.
Imaginem um MJ futuro, já no auge das manipulações genéticas... O que aprontaria? Não é justamente isso que aquele famoso clip 'black and white' anuncia, fundindo dezenas de faces?
Ora, MJ não é apenas o corpo que morreu anteontem, mas também o conjunto bilionário de todas as representações que dele fazemos. Representações vivas que se materializam em covers espalhados pelo mundo afora. Quem não gostaria de deslizar eternamente com aquele gingado?
E ao oferecer ao mundo seu processo de fabricação artificial de si mesmo como objeto de adoração, está absolutamente alinhado com a necessidade pós-moderna de desvinculação da instância terceira de um Outro - pai, pátria, religião, instituição, causas sociais e políticas, moral etc.
E está também alinhado com as boas práticas do mercado. Um mercado para o qual a auto-referência representa o caminho da maior lucratividade, pela via da globalização, que se entranha nesse declínio do Outro através da flexibilização econômica - atores sem nada acima deles que impeça a maximização das trocas.
Como sinal dos tempos, o percurso de MJ absorve diversos traços característicos da vã tentativa de remediar a carência do Outro:

a) o discurso para o bando, para a gangue (esse é o ambiente dos clips), onde se distribui a responsabilidade da 'auto-fundação';

b) o impulso para a adição (mesmo que pela via da medicalização ou do consumo), um recurso imprescindível para enfrentar depressão e dor;

c) os signos da onipotência tão comuns ao estrelato;

d) um implacável enfraquecimento do espírito crítico (não há a quem prestar contas), daí para o endividamento, um passo;

e) as novas formas sacrificiais e a manipulação do corpo

f) a negação da diferença sexual e geracional;

g) a exposição da vida íntima como artifício de mercado (prenuncia os blogs).

Do ponto de vista das mercadorias, MJ representa um ponto culminante no processo de fetichização. Foi aí que ouvi do meu amigo João Carlos Salles a famosa tirada do velho Marx sobre o futuro do capitalismo, na direção do fetiche: as mesas vão dançar...
E nós, o que faremos sem essa pirueta fantástica fingindo ser coisa nossa?

1 - Flexão pós-moderna de uma famosa crítica ao capitalismo: "homens reduzidos ao estado de produtos"
2 - Cf. Dufour, A arte de reduzir as cabeças. Editora Companhia de Freud.


Paulo Costa Lima é compositor. Pesquisador pelo CNPq. Professor de composição da Universidade Federal da Bahia.www.myspace.com/paulocostalima - http://www.paulolima.ufba.br/ Fale com Paulo Costa Lima: paulocostalima@terra.com.br

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